Intervenção do Procon-SP em cláusulas abusivas da Nintendo indica tensão crescente

Para Vinicius Krey, há um estresse entre interesses das empresas na proteção de ativos e os direitos dos consumidores
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Imagem: Divulgação, Nintendo

O Procon-SP notificou a Nintendo em maio pedindo esclarecimentos sobre recentes alterações unilaterais nos termos de uso de seus serviços, que passaram a prever medidas severas contra consumidores suspeitos de práticas como a pirataria. A reação do órgão de defesa do consumidor reflete preocupações legítimas acerca da legalidade de cláusulas contratuais que podem ser consideradas abusivas à luz da legislação brasileira, especialmente do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A notificação teve como base relatos de consumidores e veículos de imprensa, motivados por cláusulas que autorizam a Nintendo a bloquear ou inutilizar permanentemente consoles e contas de usuários – prática conhecida no jargão gamer como “bricking”. A empresa, que tem histórico de judicialização contra violações de propriedade intelectual, alegadamente inseriu essas disposições com o objetivo de conter a pirataria.

Além disso, os novos termos passaram a prever cláusulas de arbitragem compulsória, impedindo o ajuizamento de ações individuais ou coletivas pelos consumidores, restringindo as disputas a mecanismos internos da empresa, além de fixarem a legislação norte-americana e o foro judicial de Washington como aplicáveis a todas as controvérsias – mesmo nos contratos celebrados no Brasil com consumidores brasileiros.

Aspectos jurídicos

Do ponto de vista jurídico, várias dessas previsões podem ser qualificadas como abusivas à luz do CDC. A começar pelo art. 6º, III, que consagra o direito à informação clara e adequada sobre os produtos e serviços, o que inclui os critérios e consequências para o bloqueio de contas ou inutilização de consoles. A ausência de transparência sobre como essas medidas são adotadas fere diretamente esse princípio.

Ademais, o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor estabelece a nulidade de pleno direito das cláusulas contratuais que imponham obrigações excessivamente onerosas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada. Nesse contexto, a previsão de bloqueio permanente do aparelho, ainda que contratualmente estipulada, revela-se desproporcional, pois compromete a funcionalidade essencial do bem adquirido, tornando-o inservível e esvaziando seu valor econômico e utilitário.

Tal cláusula, portanto, não apenas contraria os princípios da boa-fé e da equidade, mas configura típica cláusula abusiva, devendo ser considerada nula de pleno direito, conforme preceitua o ordenamento jurídico consumerista.

De igual modo, cláusulas que preveem modificações unilaterais nos contratos após sua celebração (art. 51, XIII) e que determinem a utilização compulsória de arbitragem (art. 51, VII) são rechaçadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Impedir o acesso ao Judiciário, como decorre da imposição da arbitragem obrigatória e da cláusula de foro estrangeiro (art. 51, XVII), afronta diretamente garantias constitucionais e legais do consumidor.

Precedente da Sony

A controvérsia remonta ao caso similar envolvendo a Sony. Em decisão recente, a Justiça brasileira decidiu que o banimento permanente de consoles por compartilhamento de jogos digitais era desproporcional e abusivo.

Conforme destacou a juíza Carolina Santa Rosa Sayegh, a empresa falhou em informar adequadamente os consumidores sobre as punições, e a medida imposta (o bloqueio definitivo) tornava o console inservível, em violação ao CDC. Naquele caso, foi admitida a possibilidade de punições temporárias e proporcionais, mas não a inutilização completa do produto.

A decisão reforça o entendimento de que a empresa fornecedora, ainda que detenha propriedade intelectual sobre seus sistemas, está obrigada a respeitar os princípios da boa-fé, equilíbrio contratual e transparência – todos pilares do direito do consumidor.

Implicações e dever de adequação

A notificação do Procon-SP é, portanto, expressão de uma postura ativa do Estado na proteção da parte vulnerável na relação de consumo.

A Nintendo, ao atuar no Brasil, deve respeitar a legislação pátria, inclusive quanto à obrigatoriedade de prestar informações claras, assegurar o acesso à Justiça e evitar cláusulas contratuais que imponham obrigações unilaterais e desproporcionais.

O episódio envolvendo a Nintendo evidencia uma tensão crescente entre os interesses legítimos das empresas na proteção de seus ativos e os direitos fundamentais dos consumidores no ambiente digital. O arcabouço jurídico brasileiro impõe limites claros às práticas contratuais e reforça o papel do Estado e do Judiciário na preservação do equilíbrio e da equidade nas relações de consumo.

À luz disso, cláusulas que preveem punições extremas, como o bloqueio permanente de aparelhos, a arbitragem compulsória e a renúncia à jurisdição brasileira, devem ser encaradas com rigor e, se necessário, declaradas nulas por ofensa à ordem pública consumerista.

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