Pesquisa quer mapear crunch e saúde mental de gamedevs brasileiros

Mestranda da UFSC, Daeana Bourscheid está ouvindo desenvolvedores de todo País sobre rotina de trabalho e saúde mental
Daeana Bourscheid, UFSC, psicóloga, crunch
Daeana Bourscheid, psicóloga e pesquisadora da UFSC. Foto: arquivo pessoal

As horas extras obrigatórias durante o desenvolvimento de jogos eletrônicos, ou crunch, no jargão em inglês, é um tema que preocupa trabalhadores (e parte das empresas) da indústria mundial de games já há alguns anos. Mas, no Brasil, que ainda tem um mercado interno jovem e pouco profissionalizado, é possível dizer que o tema ainda recebe pouca atenção.

A falta de dados sobre crunch no País é justamente o que a pesquisadora catarinense Daeana Paula Bourscheid, psicóloga e consultora de saúde mental no trabalho, quer remediar. Ela está conduzindo, como parte de seu mestrado em psicologia das organizações e do trabalho na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), uma pesquisa com desenvolvedores brasileiros.

A pesquisa está sendo conduzida com orientação de Andrea Valéria Steil, professora associada do Departamento de Psicologia da universidade catarinense.

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O objetivo é saber se os devs estão trabalhando mais do que o humanamente saudável. Para isso, ela tem convidado, desde abril desse ano, profissionais de todo País para responderem um questionário sobre a própria rotina de trabalho.

“Tendo contato com desenvolvedores, a gente percebe que o pessoal trabalha bastante. A gente sabe que tem [crunch], mas ainda não temos a evidência empírica”, diz Daeana, em conversa com o TGE. “Tanto nos censos da indústria como em outras pesquisas não encontrei nada. É justamente essa lacuna que pretendo preencher com minha pesquisa.”

Na entrevista abaixo, Daeana explica quando começou o interesse dela pelo mundo dos games e que efeitos negativos o excesso de trabalho pode ter sobre os profissionais desenvolvedores.

TGE: Primeiro conta um pouco sobre você, Daeana. Você é psicóloga, certo?

Daeana Bourscheid: Eu sou de Itapiranga, extremo oeste de Santa Catarina. Estou em Floripa desde 2017, desde o começo da graduação [na UFSC] pensando em [me especializar em] psicologia organizacional e do trabalho. Me formei no fim de 2022.

No fim da graduação fui me aproximando do mundo dos jogos, comecei a jogar mais e entrar em contato com mídias que falam sobre crunch. Uma professora da graduação sugeriu um projeto de mestrado, porque eu já estava na pesquisa acadêmica desde o começo [do curso].

Eu pesquisei saúde ocupacional, fui gradualmente me encaminhando para esse tema específico. De 2023 até agora tenho feito palestras sobre saúde mental, com foco no espaço de trabalho. Atuo também como psicoterapeuta, em organizações e em clínica.

Meu maior interesse é construir carreira ajudando as organizações a pensarem saúde mental no trabalho.

TGE: E por que pesquisar o mercado de trabalho na indústria de games?

Daeana: Eu submeti [o tema do crunch] a vários programas [de mestrado], e vários gostaram. Eu poderia ter levado para a área de administração, mas como sou da psicologia decidi ficar na psicologia. Comecei [o mestrado] em 2023 e finalizo agora no fim desse ano.

Na verdade foi algo bem orgânico. Comecei a acompanhar a mídia e ouvir podcasts sobre o tema. O que mais me chamou a atenção é como o universo dos games é cutting edge [líder] em basicamente tudo.

Os profissionais têm que estar se atualizando sempre, em competição com os colegas, por isso a insegurança laboral é muito forte, com precarização do trabalho, contratos temporários baseados em projetos. E também tem a questão da tecnologia: é preciso estar sempre se atualizando. E ela sempre está mudado. É um contexto em ebulição.

Quanto ao crunch, uma das minhas hipóteses como pesquisadora é que nesse contexto há muitas questões emergentes aparecendo. Com o crunch ocorrendo nesse mercado, ele vai ser naturalizado em outros?

Essa é uma inquietação que tenho enquanto pesquisadora. Que talvez esse fenômeno se torne um problema em outras indústrias e setores.

TGE: Pelos números que você já tem até aqui, já é possível afirmar que o crunch ocorre no Brasil?

Daeana: No Brasil, tendo contato com os desenvolvedores, já se percebe que o pessoal trabalha bastante. A gente sabe que tem [crunch], mas não temos evidências empíricas. Tanto nos censos da indústria como em outras pesquisas não encontrei nada, e é justamente essa lacuna que pretendo preencher com minha pesquisa.

TGE: Até quando você pretende coletar respostas dos devs brasileiros?

Daeana: Começamos a divulgar a pesquisa na metade de abril e vamos provavelmente até julho, talvez agosto, com o questionário aberto. Dois ou três meses coletando respostas. Eu pretendo atingir no mínimo 370 respostas.

Com base em cálculos amostrais, a gente pega o número total de desenvolvedores do censo e faz o cálculo. Já dá para ver que o questionário está cumprindo o propósito. Estou conseguindo fazer análises preliminares interessantes.

TGE: E quando você espera ter os dados do estudo?

Daeana: Entre outubro e novembro já vou ter dados tabulados. Minha defesa [do mestrado] é entre novembro e dezembro. Antes disso é mais difícil divulgar, por conta do processo de escrita [da dissertação].

TGE: Já pode adiantar algum resultado?

Daeana: Enquanto pesquisadora é difícil adiantar conclusões sem os dados tabulados e analisados. Eu tenho leves impressões de certos movimentos a partir das questões no questionário.

Tem uma questão sobre quanto tempo a pessoa trabalha em uma semana normal ou fechando um projeto. Tem algo visível acontecendo ali. Algo que indica que há uma mudança sobre quanto uma pessoa trabalha no momento normal e no fechamento [de um projeto].

O quanto isso é crunch só vou conseguir saber com as análises mesmo, então não posso afirmar a priori.

TGE: Que efeitos negativos o crunch, ou o excesso de trabalho, pode ter sobre um profissional?

Daeana: A gente tem pouca evidencia dos efeitos [na literatura acadêmica]. É outra lacuna que pretendo preencher. Queremos saber se tem, o quanto ocorre e se a saúde mental está prejudicada por conta dele.

Mas sabemos o que acontece no excesso de trabalho: produz principalmente fadiga e exaustão. Essa é a primeira questão: fadiga física e mental. A pessoa não consegue pensar direito.

E tem outros problemas que já sabemos: problemas estomacais, não conseguir se alimentar direito, distúrbios de alimentação. O sono é prejudicado, o tempo de lazer é prejudicado, as relações sociais também.

A gente pode dizer que todos os setores da vida da pessoa são prejudicados porque ela passa tempo demais trabalhando.

TGE: O Marco Legal dos Games, sancionado recentemente, finalmente reconhece as profissões ligadas ao mercado de games. Você acha que essa regularização também tende a reduzir condições inadequadas ou ilegais para os desenvolvedores e outros trabalhadores da indústria no Brasi?

Daeana: Eu acredito que qualquer formalização trabalhista vai ter efeito na forma como os profissionais executam seu trabalho. O fato deles agora serem reconhecidos com certeza terá impacto sobre como poderão se formalizar nos estúdios, se inserindo formalmente no mundo dos games.

É muito importante a identificação desses profissionais com o que eles executam. Há um poder positivo enquanto identidade do profissional e para a indústria como um todo. É um avanço com certeza.

TGE: Que contribuição você espera que seu trabalho traga para o mercado e para os profissionais brasileiros de games?

Daeana: São dois impactos possíveis. Primeiro constarmos que o crunch existe e gerar um burburinho. A segunda é ele não existir, e nos questionarmos “como assim?”. Por que no exterior existe e todo mundo faz, então o que nos diferenciaria? E podemos usar nossa experiência para aprimorar as condições lá fora.

No primeiro caso, que é o mais provável segundo a minha hipótese, a gente pode usar esse trabalho para pensar a situação do crunch. Podem ser feitas investigações nas organizações, se elas fazem, o que fazem, e como mudar isso.

Acredito no efeito de começar a mobilizar a indústria, mas principalmente começar a pensar em políticas públicas. Fazendo pesquisa sobre como acontece o trabalho nessa indústria, vamos poder aprimorar as relações trabalhistas para ter uma indústria sustentável, que garanta a saúde dos trabalhadores.

Delimitação de horas trabalhadas, incentivos financeiros para contratar mais pessoas… Eu acredito nesses efeitos.

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