Rodrigo Terra é atualmente uma das figuras carimbadas da indústria brasileira de games. Ele estreou no setor em 2017, como um dos cofundadores da Arvore Immersive Experiences, empresa especializada em narrativas com realidade estendida (XR). Desde 2021, ele também atua como presidente da Abragames, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais, que cuida dos interesses de mais de mil estúdios locais.
Na longa entrevista a seguir, conversei com Terra sobre a atual situação do mercado brasileiro, a crise dos modelos de negócio e as consequências dos enxugamentos em grandes empresas para o cenário local, além de outros temas relevantes.
Confira:
Gostaria de uma visão global sobre o atual estado de nossa indústria. Como dono de estúdio e presidente da Abragames, como analisa trabalhar com jogos no Brasil?
Rodrigo Terra: Eu empreendi no mercado de audiovisual por muito tempo antes de entrar nos games. Sempre fui apaixonado por contar histórias e também sempre fui gamer, desde os Ataris. Em algum momento, quis cruzar essas paixões com a tecnologia, e foi quando surgiu a oportunidade de fundar o Arvore em 2017, com meus sócios, o Ricardo [Justus] e o Edouard [de Montmort].
Só que a gente ainda olhava esse mercado com um pouco de reticência em relação à maturidade. Eu já conhecia desenvolvedores que tocavam estúdios há alguns anos e ouvia os dramas deles. Além disso, era algo que ainda não existia – naquele momento, a realidade virtual nos games era um negócio que mal tinha saído das fraldas.
Então, era um risco grande. Mas eu tinha certeza de que o mercado estava amadurecendo de forma orgânica.
Quando olho a perspectiva atual, lembro desse começo, em que não havia a segurança de que empreender no Brasil fosse algo possível. Hoje, vejo um mercado que cresceu violentamente no consumo, mas também que cada vez mais gente quer fazer jogo por aqui.
Quando falo de crescimento, é pensando na quantidade de estúdios ou de pessoas que resolvem empreender e que não seja necessariamente por necessidade. Isso reflete na minha confiança como desenvolvedor, de continuar meu sonho, que virou realidade e missão: de fazer um estúdio reconhecido internacionalmente, com talentos que queiram trabalhar aqui e não irem embora para outro país.
Em 2018, eu era um dos 400 estúdios; hoje, temos mais de mil.
Isso dá orgulho e alívio, e essa sensação eu compartilho com centenas de empreendedores que resolveram entrar no mercado – de que é possível ter um estúdio de games como negócio viável, e de que se um profissional quiser uma carreira, não precisará ficar trocando de indústria.
Agora, a questão é em qual velocidade o mercado vai crescer. Temos um cenário macroeconômico e internacional que abre oportunidade de o Brasil ser protagonista. Principalmente porque os modelos de negócio em games, na sua maioria, estão em crise.
Eu vejo que na crise pode ter uma grande oportunidade para a gente entrar e, enfim, ser um superpolo. Foi nisso que apostei lá atrás, e acredito que estejamos no momento de consolidar essa visão.
Você mencionou “a oportunidade que vem da crise” e a quantidade de estúdios que atuam no Brasil. Quais dados da pesquisa divulgada recentemente pela Abragames mais te surpreenderam?
Terra: Um dos dados surpreendentes da pesquisa, que é referente a 2022, foi a virada no interesse dos estúdios em investir em jogos e serviços para PC, após vários anos em que a maioria olhou para o mobile. Por que essa mudança de interesse, sendo que a gente sabe que o mobile pode ter um retorno muito maior?
Obviamente, isso vem muito da crise do próprio modelo de negócio de jogos mobile. Não só a saturação de mercados, mas também a questão da competitividade por espaço e atenção, que afeta toda a cadeia de economia criativa. Como tudo hoje passa pelo mobile, essa crise na competição pela atenção traz o pensamento de que precisamos diversificar.
Em termos de modelos de negócio, o mobile não fatura mais tanto quanto antes. É um mercado que não sabe mais exatamente qual é o caminho da monetização. É muito difícil fazer um jogo pegar, e o custo de aquisição por usuário é cada vez mais caro. Até o mercado asiático está extremamente saturado.
Então, é interessante entender o porquê da mudança de interesse pela plataforma PC, e aí você acompanha os movimentos: por exemplo, a Sony começa a pegar franquias exclusivas de PlayStation e as lança para PC, com o objetivo de se conectar em mercados como o da América Latina, em que o console não tem uma penetração como em outros países.
E a gente precisa entender o que é o PC. Nos anos 1990, era o desktop que ficava na mesa. Mas e hoje? Estamos indo para um movimento em que o Steam Deck, o Switch e outros tipos de device vão ficando mais populares. Tem o cloud streaming, que permite que um jogo de PC rode em qualquer lugar. Acho que no último dado da Steam, foram cerca de cem jogos lançados por dia em 2023. O próprio mercado de PC vai sofrer com a saturação, né? Hoje é muito mais fácil fazer um jogo, a barreira de entrada é muito baixa.
E quando observamos o espectro do consumo de mídia, temos uma convergência cada vez maior dos aparelhos em que a gente consome. Então, como destacar um jogo, sendo que no mesmo aparelho você joga, vê filme, trabalha, pede sua comida? Tudo começa a ser uma grande competição.
Ao mesmo tempo, também tem o movimento de plataformas de streaming investindo em jogos. O Netflix Games não aconteceu à toa. E tem o Tik Tok, em que o consumo de conteúdo de games explodiu. Estamos vendo essa mudança de paradigma acontecer como nunca.
Ao mesmo tempo, tem uma crise no mercado de tecnologia em que mais de 60% dos players do mercado de games são também do mercado de tecnologia.
Obviamente, o que afetou o mercado de tecnologia iria afetar os games mais cedo ou mais tarde. Assim, essa mudança do paradigma da receita para eficiência pegou nosso mercado de forma direta.
A recente onda de demissões de grandes empresas não assusta apenas quem trabalha no setor. Quando o consumidor vê que a PlayStation demitiu 900 pessoas e fechou estúdios, começa a refletir que tem algo errado. Qual é a conexão entre os enxugamentos de players estrangeiros e o que rola no mercado brasileiro hoje?
Terra:
Essa conjuntura é o que chamamos de “inverno dos games”, em que há uma crise de um modelo de negócio e jogos de orçamentos multimilionários, levam muito tempo para se pagar.
Somente aqueles hits instantâneos conseguem algum tipo de início de retorno de seu investimento inicial. Pegue o Spider-Man 2, que teve 500 milhões de dólares de orçamento: vai demorar anos para a Sony recuperar o dinheiro investido e começar a ter lucro.
Muitos estúdios grandes adotavam a estratégia de “quanto mais jogos produzidos, menor o risco”. Só que todo o mercado de economia criativa é um mercado de risco. Depende se o produto vai pegar ou não. É diferente de vender um bem de consumo, que é uma necessidade básica.
A questão é que esses orçamentos gigantescos também propiciaram o crescimento de muitas empresas aqui – empresas de outsourcing, trabalhando em franquias que precisam de um contingente de serviço muito grande. Por isso, houve um grande investimento dessas empresas em terceirização ao longo da década passada, visando o crescimento rápido e aumentar o valor de seu negócio.
Então, essas decisões de lay offs acontecem por práticas de um mercado que viveu uma bonança por um bom tempo, mas que depois explodiu. Vamos dizer que por mais de década a gente viveu em uma bolha. Hoje, todas as empresas estão com risco, né? A pessoa que trabalha tem certo medo se vai continuar lá no dia seguinte ou se vai ser ela na fila da demissão.
Porque os investimentos feitos na última década precisavam trazer crescimento interno, só que isso não se provou. Agora, a gente vê o resultado das grandes empresas terem contratado tanta gente em tão pouco tempo, na crença de que isso permaneceria por muitos anos. Chegamos ao momento em que os investidores falam: “Olha, agora precisa cair na real, quero o retorno do meu investimento”.
Mas o que isso tem a ver com o Brasil? Acontece que essas empresas fecharam contratos com os estúdios do Brasil, de licenciamento, outsourcing, publicação, e esses estúdios também sofreram na carne com esses cortes. Com isso, a empresa que contratou 15 profissionais para trabalhar nesse projeto vai ser obrigada a fechar essa linha. E aí, demite 15 pessoas.
A pergunta de trilhões de dólares: para onde vão essas pessoas sem trabalho e toda uma geração de profissionais que está se preparando para entrar na área? Eu sinto que o mercado não vai conseguir absorver todo esse povo que está saindo e chegando. Qual seria a solução?
Terra: Se houvesse a solução mágica, a gente estaria aqui fazendo os novos trilhões da indústria. Mas existem caminhos que pelo menos dão um norte. Eu falei da crise nas oportunidades, e não tem falácia nesse papinho, porque agora temos um mercado que procura eficiência e não busca receita a qualquer custo.
Ou seja, o negócio precisa ser rentável e custar menos.
Não estou tirando a paixão de ninguém, porque também sou apaixonado pelo que faço. Mas a gente tem que lembrar que isso é um negócio, é um comércio, né? Então, precisamos pensar em caminhos para conseguir ser a solução de eficiência. Como fazer isso?
Primeiro, fortalecer as empresas nacionais. Investimentos no Brasil ficam no Brasil, para que empresas e profissionais cresçam. Melhores negociações, para que o estúdio possa ter uma posição mais vantajosa.
É preciso fazer um trabalho de melhoria completa de base salarial para o setor. Uma equiparação a salários internacionais é um sonho que a gente tem de buscar.
Se compararmos a nossa indústria, ainda estamos abaixo de nossas referências, como os EUA, a Europa, Japão, Coreia do Sul.
Segunda coisa: a gente precisa ter empresas que cresçam de forma sustentável. E aí vejo a oportunidade de empreender. O mercado de games tem versatilidade grande para trabalhar com outras indústrias. É preciso encontrar outros ângulos para se envolver em setores que precisam dessa expertise.
As coisas estão evoluindo, e os formatos e linguagens dos produtos estão convergindo em meio a uma crise que faz com que empresas desinchem e profissionais sejam jogados no mercado de trabalho. As empresas precisam de oportunidades para empreender, o que exige a criação de um ecossistema para que as pessoas se sintam seguras mesmo depois de um lay off.
O terceiro ponto é que os interesses do mundo e as formas de interação estão mudando a todo momento. Eu não sei qual é a solução, mas está claro que o que foi feito nos últimos cem anos não vai funcionar mais. Então, não vejo um ponto final, mas um ponto de começo, sabe? Algo novo vai surgir, então por que eu não posso fazer parte disso?
Na pesquisa, você também menciona um cenário favorável de estabilidade política. De fato, hoje existe um Brasil mais estável nesse sentido. O que isso representaria para um melhor desenvolvimento da nossa indústria?
Terra: A questão da estabilidade política é uma leitura mais global da Abragames. O que a gente enxerga é um momento de equilíbrio que pode ser muito benéfico. Porque a indústria do videogame não tem um “partidarismo”, o que significa que ela não está no espectro político. Estamos falando de todo mundo – de acordo com a PGB, 73% da população joga.
Então, é gente de direita, de centro, de esquerda… pessoas alinhadas com tudo quanto é ideologia.
E todos estão preocupados com as questões da área de games, seja porque precisa desenvolver a área de negócios e de um melhor ambiente de consumo, seja porque quer o jogo mais barato.
O equilíbrio de visões é importante para o mercado de desenvolvimento acontecer, e também para olhar o videogame como um importante ativo cultural. O que vejo para a coisa acontecer é um movimento que já está iniciado, do poder público induzindo e acelerando um processo de crescimento que sempre foi orgânico, e vai continuar sendo.
Mas quando se tem um governo que faz o crescimento acelerar de forma sustentável, isso faz com que uma área da economia desponte. Se em um cenário internacional de crise a gente construir as melhores oportunidades para que os estúdios despontem, e se tiver um governo jogando a favor do setor, estaremos trabalhando em iguais condições às outras potências do videogame no mundo.
Então, enxergamos esses movimentos como positivos. O videogame começou a virar relevante para a sociedade e o próprio governo deve responder a isso. Se você não conversa sobre games e Tik Tok hoje no Brasil, você não fala com a Geração Z. Como perpetrar caminhos de país sem estabelecer um diálogo com a sua própria população que está crescendo, sendo que games são uma parte importante da conversa?
Se o governo joga junto, isso faz com que o mercado floresça de forma absurda. E aí, para aumentar o número de jogadores, é uma conjuntura de fatores. Já temos mais pessoas jogando. A pandemia também incluiu muita gente. Quem nunca jogou e estava preso em casa enfim começou a experimentar.
Para aumentar o awareness sobre videogame, é importante que o investimento no setor seja feito de forma intensiva, clara e sustentável. A gente vai crescer independente de qualquer coisa. Atualmente, somos dois e meio por cento dos jogadores do mundo.
Só no Brasil temos mais de 200 milhões de habitantes. Com essa quantidade de população, poderíamos ser uma potência de consumo gigantesca. Mas não somos, porque temos barreiras, o acesso é muito complicado.
Aqui, os serviços acabam sendo baratos, e os bens de consumo são muito caros. O console é caro, o celular que roda o Resident Evil custa R$ 12 mil… Isso não é a realidade da população.
Então, ainda existe esse obstáculo para a gente crescer.