O número 10 talvez seja cabalístico para o desenvolvedor de games gaúcho Alessandro Martinello. A cabeça pensante por trás do incrível indie brasileiro Mullet Madjack tem uma década de experiência na criação de jogos e precisou de apenas 10 horas de vendas do game na Steam para pagar quatro anos do desenvolvimento do game – feito por uma equipe de três pessoas e começado durante a pandemia.
O FPS mistura as brutais animações japonesa das décadas de 1980 e 1990 com uma pitada de Hotline Miami, Hades e por que não, a violência dos filmes de Quentin Tarantino em um mundo cyberpunk – você tem 10 segundos para matar e, assim, ter mais segundos para viver. Neste frenesi, Martinello foi extremamente estratégico para criar seu game de maior porte até aqui.
“Eu como dev indie com mais de 10 anos de experiência, aprendi simplesmente a procurar tendências de mercado e unir com as coisas que eu gosto de fazer”, diz ele.
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Ninguém dúvida que o gaúcho acertou em cheio – um headshot. São mais de 2.800 análises “extremamente positivas” na Steam, reviews internacionais em sites como IGN e Kotaku, além de centenas de milhares de wishlists em países como Canadá, Estados Unidos e Europa.
No bate-papo que tive com Martinello, ele traz alguns insights bem interessantes do mercado indie e como conquistou todo esse sucesso já nas primeiras horas de lançamento, além de seguir numa curva de crescimento com o jogo há pouco mais de um mês na Steam. Vale conferir.
Visual único, ou agradando velha e nova geração
“Durante a pandemia, comecei a pensei um jogo maior. Como ia ficar dois anos trancado em casa e sempre quis fazer um jogo de tiro em primeira pessoa – essa foi a primeira premissa. A segunda premissa é que sempre gostei de animação japonesa da era de ouro do VHS entre 1985 e 1995, então mirei nesse estilo. Percebi que esse estilo era bem admirado no Twitter e inclusive por novas gerações que nem viveram essa época. “
“Tendo em vista que eu confiava na minha habilidade de mimetizar esse estilo dos animes clássicos e o fato que esse estilo ia agradar tanto a nova quanto a velha geração e também o fato de não existir nenhum jogo com esse visual, pensei que seria um jeito fácil de chamar a atenção neste mundo já bastante cheio de jogos FPS. “
Mercado internacional (mirando as wishlists)
“Como todo o indie no mundo, é preciso mirar o mercado internacional já que qualquer game indie se mantém através de wishlists, principalmente dos EUA, Canadá e Europa – que representam 70% a 80% das suas wishlists. Então é preciso trabalhar com esse público e com o jogo totalmente em inglês.”
“Promovemos o jogo no Brasil, mas o fato do jogo chamar a atenção lá fora sempre foi a estratégia principal. E agora que conseguimos que o jogo se pagasse em 10 horas, temos condição de fazer a dublagem em português e implementar ela nos próximos patches. “
Fisgando YouTubers internacionais
“Estratégia do visual dele chamar a atenção, por ser algo que ninguém tinha feito antes, e o fato dele ter um gameplay que chama a atenção por si só, devido a velocidade, baseado em outras tendências de jogos de tiro, tornaram o jogo muito fácil de se destacar no meio da multidão.”
“Foi uma situação realmente da nossa equipe marketing colocar ele no maior número de olhos possível, o Twitter conseguir realmente fazer o jogo chamar a atenção de YouTubers, e nisso fomos bem sucedido. Praticamente todos os grandes YouTubers de jogos FPS cobriram o lançamento do jogo porque já eram fãs dele mesmo antes da demo.”
Retorno rápido
“Foram quatro anos pagando salário para duas pessoas, mais o meu sustento. Eu já tinha uma série de jogos menores na Steam que permitiam eu ter esse capital inicial. Com a pandemia, aproveitei para fazer um projeto maior usando esse capital e ele deu retorno nas primeiras 10 horas de venda do jogo, pagando os funcionários.”
“Com isso, ficou muito fácil de alavancar as vendas do jogo a cada nova ‘sale’ e a cada novo evento. Se continuarmos colocando conteúdo no jogo e mantendo a comunidade, provavelmente o jogo vai vender muito mais.”
Reviews e mais reviews
“A estratégia era passar 500 reviews e já tínhamos angariados muitas wishlists em eventos e festivais que fomos convidados para participar devido ao visual do game. Queríamos alcançar 500 reviews na primeira semana do jogo, porque é mais ou menos a partir daí que a Steam começa a tratar seu game como propriamente dito. E essas 500 reviews vieram nas primeiras 24 horas.”
“E agora é realmente é aproveitar o fato que a aprovação foi acima do esperado. Estávamos mirando acima de 90% de aprovação, mas a gente realmente atingiu o extremamente positivo (98%) e agora com 2800 reviews. Então, ainda com as wishlists na casa de centenas de milhares, a gente pode trabalhar com calma, colocando mais conteúdos e deixando o jogo cada vez melhor para os novos players.”
Importância das associações
“A Abragames e principalmente as associações regionais evoluíram muito nos últimos anos. Por exemplo, a Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Rio Grande do Sul, que começou em 2014, me dá toda a assessoria de business, jurídica, contábil, e principalmente tem vínculos com o Instituto Caldeira e outras instituições que conseguiram, por exemplo, nos dar pacotes de tradução do jogo.”
“Hoje [o game está] traduzido em 11 línguas e pelo menos metade disso foi feito com ajuda da associação e outros programas de incentivo para que os desenvolvedores indies possam se internacionalizar melhor. Então o jogo saiu a venda com 11 línguas mesmo sendo um jogo indie desenvolvido por três pessoas.”
Dicas para um indie bem-sucedido
“Eu como dev indie, com mais de 10 anos de experiência, aprendi simplesmente a procurar tendências de mercado e unir com as coisas que eu gosto de fazer. Primeiro é preciso fazer um jogo que você gosta e sente falta, o que provavelmente também tem um público lá fora e que também sente falta.”
“Você tem que levar isso como profissão, levar em consideração em que direção o mercado está indo, e tentar ajustar qual o pitch melhor para atender essa demanda que está detectando. O ponto principal é que tem 50 a 60 ideias de jogo que eu adoraria fazer, mas daí é preciso comparar com as demandas do mercado para fazer a melhor escolha. Quando dá o match entre a demanda que você está vendo a demanda no mercado e o jogo que você sempre quis fazer é o que provavelmente dá tração para o jogo ficar conhecido organicamente.”
“Mas além disso, todo dev tem que saber que é preciso escolher um tipo de jogo, de gênero, que você não vai enjoar de jogar, que vai jogar 500 vezes seguidas, porque no fim alguém vai ter que testar o jogo praticamente todos os dias e esse alguém vai ser provavelmente o dev. Todo isso já faz eu definir o game que vou escolher entre esses 60 pitches de games que sempre quis fazer.”
“Eu praticamente tenho uma ideia de jogo a cada dois ou três dias, mas somente pouquíssimas delas vão atender esses os requisitos: um jogo que tem mercado, que sempre quis fazer e que vou jogar diversas vezes no desenvolvimento.”
Em mercado saturado, caminho são projetos menores
“Mercado saturado as empresas precisam focar em projetos menores. O diferencial não é ter mais conteúdo, ter gráficos, 300 personagens… O diferencial é entregar algo que justamente as empresas dos triple As não estão interessados em oferecer.”
“Quando você vai na contramão desses grandes lançamentos, provavelmente está atendendo uma carência de mercado. O indie muitas vezes é o único game que vai resgatar um tipo de gênero, de jogo ou sensação que nenhum dos triple As pode proporcionar. Mas muitas vezes o erro está em achar que é preciso fazer a versão grandiosa dessas ideias contrárias ao triple A. As vezes o ideal é apenas enxugar um gênero para um mínimo denominador comum.”
“Por exemplo: ao invés de fazer um sucessor do Age of Empires, fazer apenas um city builder medieval sem batalhas, talvez focado em outras características sendo muito mais barato e rápido de criar. O ponto é que existe um público disposto a ter essas experiências diferenciadas.”
Futuro de Mullet Madjack
“A curto prazo quero colocar novos modos no game e consultamos a comunidade sobre o que eles gostariam. Manter a comunidade de speed runners que está se formando e só depois disso pensar na portabilidade para consoles.”
“Depois disso, com essas vendas e comunidade, o melhor jeito de vender o jogo talvez não seja fazer uma sequência, mas sim continuar aprimorando o mesmo game para ele ficar cada vez mais rico para os jogadores novos que vão chegando e também ressuscitar a graça para as pessoas que já jogam ele por hobby.”