Nos últimos meses, o uso de inteligência artificial (AI) generativa tem sido objeto de debates no mercado de jogos estadunidense, culminando em uma nova greve pelo sindicato dos atores (SAG-AFTRA) no fim de julho. Assim como ocorreu com os profissionais de Hollywood no ano passado, a atenção e preocupação agora se voltam para o setor de games, onde há receio por parte dos artistas de que a IA reduza ou elimine oportunidades de trabalho.
Com o uso de IA generativa, a preocupação da entidade é que os estúdios e desenvolvedores de jogos criem personagens a partir de bancos de dados de captura de movimentos e gravações de trabalhos anteriores, dispensando a necessidade de novas contratações de artistas.
Em outras palavras, estar-se-ia gerando novos conteúdos a partir de dados previamente coletados.
A principal preocupação deste setor paira na falta de transparência quanto ao uso de seus dados e na justa remuneração dos artistas, uma vez que a possibilidade da IA replicar movimentos, imagem e voz possa tornar desnecessária a contratação em futuros projetos.
O caso em comento é mais um exemplo da evolução da IA, sobretudo a generativa, que possibilita a criação de conteúdos inéditos a partir de bases de dados existentes. Aqueles que defendem o avanço da IA argumentam que suas vantagens incluem a aceleração do desenvolvimento de games, a redução dos custos de produção e a eficiência no processo de tradução de jogos para o contexto cultural do país ou região ao qual está sendo comercializado, também conhecido como localização.
Sem dúvida, a eficiência econômica é um cenário sempre atrativo para qualquer empresa que busque aumentar sua margem de lucro. Entretanto, é preciso ponderar quais valores ou aspectos podem ser perdidos ao perseguir esse objetivo, o que motivou, em 29 de março de 2023, o manifesto “Pause Giants IA Experiments: An Open Letter“, assinado por especialistas da área pedindo a pausa temporária no desenvolvimento de IAs.
Recentemente, o mercado de jogos foi palco de polêmica envolvendo o jogo Palworld, lançado no início deste ano, com personagens que se assemelham bastante aos da já conhecida franquia Pokémon. Sem entrar no mérito da discussão, fato é que o uso de novas tecnologias permitiu que os desenvolvedores criassem mais de 100 personagens únicos, e com suas devidas peculiaridades, em apenas três anos desde o início do desenvolvimento do jogo em 2021.
Contudo, diferente deste caso, onde se poderia discutir eventual plágio por aproveitamento de uma ideia, e que, via de regra, não é protegida pela Lei de Direitos Autorais (conforme art. 8º da Lei nº 9.610/1998), a substituição ou réplica de humanos pela IA levanta questões não somente éticas como jurídicas, relacionadas à proteção dos direitos da pessoa humana, ou da personalidade, como sua voz, movimentos e imagem.
Caso brasileiro
Sob a perspectiva da legislação brasileira, a proteção da personalidade e dos dados pessoais, esta última recentemente incluída pela Emenda Constitucional 115/2022, são direitos assegurados na Constituição Federal, norma central e balizadora de nosso ordenamento jurídico. Em matéria infraconstitucional, o Código Civil e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) são as principais leis que protegem esses direitos.
Em matéria de inteligência artificial, ainda não há uma legislação efetiva sobre o tema Brasil, porém tramita no Senado Federal o PL 2338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG). O projeto, fruto de uma comissão de juristas formada em 2022 para unificar outros projetos em tramitação, busca trazer o que há de mais moderno em matéria de inteligência artificial a nível mundial e conciliar a proteção da pessoa humana e a inovação tecnológica.
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Um relevante aspecto incorporado pelo projeto, e que é útil para a presente discussão, são os princípios previstos no art. 3º, como transparência, explicabilidade, inteligibilidade, auditabilidade, além da prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos. Se bem aplicados, na hipótese de eventual transformação em Lei, permitirão rastrear os dados utilizados na criação de determinado personagem e garantir ao seu titular a devida compensação por sua coparticipação, de forma semelhante aos royalties.
Do ponto de vista contratual, será exigido maior detalhamento dos contratos no que tange à cessão dos direitos para usos futuros, ou que, no aspecto econômico, os valores sejam reajustados para refletir essa nova realidade, já considerando o uso dos dados dos autores em outros jogos ou franquias da mesma desenvolvedora.
Portanto, a limitação total ao uso da IA não é a resposta e está longe de atender à constante evolução tecnológica. O mercado tenderá a buscar um equilíbrio conforme surgirem novas realidades, cabendo ao Direito estabelecer regras de controle, auditoria e responsabilização, e, em último caso, frear o desenvolvimento daquilo que possa prejudicar a humanidade.
Tudo isso com o intuito de resguardar o elo mais vulnerável da questão: o ser humano.