Muito prazer, meu nome é Victor Lopes, sou jornalista de formação, já passei por algumas redações escrevendo sobre economia e tecnologia, conquistei prêmios com as minhas reportagens, e há décadas jogo videogames.
Em 1996, aos 12 anos de idade, enlouqueci quando vi em uma locadora do interior do Paraná um gameplay de Super Mario 64. Menino, eu já tinha alguns anos jogando videogame, mas talvez pela primeira vez percebi que aquele hobby de infância faria parte da minha vida toda. Bem, 28 anos depois, aqui estou eu, escrevendo minha primeira coluna para o The Gaming Era.
Realmente, os games não deixaram minha vida – aliás já estão na vida dos meus filhos – e hoje tenho muito prazer em escrever sobre eles. Mais do que dos jogos em si, gosto das histórias relacionadas a esse universo e o impacto que têm na vida das pessoas e (também do mercado). Não por acaso, nesta minha primeira coluna vamos conversar sobre acessibilidade em videogames.
Se você, leitor do TGE, acompanha o mercado de jogos já deve ter visto por aí controles adaptáveis de Xbox e Playstation para jogadores de mobilidade limitada. O que talvez você não saiba é que estamos falando de 25 milhões de pessoas com deficiência que já jogam videogame de alguma forma no Brasil, sendo que cerca de metade precisa de algum tipo de controle ou recurso de acessibilidade para poder jogar. Um número significativo, que está transformando a forma com que a indústria se relaciona com elas.
Para falar sobre um tema tão sensível e valioso para mundo dos games, conversamos hoje com Christian Bernauer, diretor presidente da AbleGamers Brasil. A AbleGamers é uma organização sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos, que foi trazida ao Brasil pelo próprio Christian, e tem a missão incrível de usar os videogames e jogos para criar experiências sociais para pessoas com deficiência.
Christian é formado em ciência da computação pela USP, pós-graduado em administração e com MBA em marketing e mídias digitais, ambos pela FGV. A entrevista dele mostra como a vontade de trazer o projeto ao Brasil realmente mudou a vida de muitas pessoas e fez grandes empresas do setor olharem também para o País – confira!
Christian, conte um pouco sobre sua história com a AbleGamers Brasil.
Christian – Em 2017, eu escrevia para o blog Nós Nerds e comecei a fazer algumas entrevistas. Fiquei sabendo da AbleGamers através de um canal no YouTube chamado Gameranx. Me interessei pelo projeto e pedi uma entrevista.
Durante a entrevista, me encantei pelo projeto e perguntei como eu poderia ajudar. Steve Spohn, diretor de operações da AbleGamers, me disse que poderíamos fazer uma live para arrecadar fundos para eles. Dois meses depois fizemos o primeiro evento da AbleGamers no Brasil, chamado de AbleGamersBR.
O evento se tornou anual, foi crescendo até que a organização decidiu me convidar para ser o representante deles no Brasil em agosto de 2020, no nosso quarto evento anual. Um ano depois, em 28 de julho de 2021, era fundada a AbleGamers Brasil, primeira ONG no país voltada para acessibilidade de pessoas com deficiência em videogames e primeira afiliada da AbleGamers fora dos EUA.
Existe algum dado hoje da AbleGamers que pode nos dizer quantos jogadores com deficiência em potencial temos em nível global ou Brasil, e que acabam não tendo acesso a indústria de jogos eletrônicos?
Christian – Nos Estados Unidos há hoje cerca de 50 milhões de pessoas com deficiência que já jogam videogame de alguma forma. Na Europa, este número é de quase 49 milhões de pessoas. No Brasil, cruzamos dados o IBGE com a PGB (Pesquisa de Games Brasil) e chegamos em um número estimado de 25 milhões de brasileiros com deficiência que jogam videogame, sendo que cerca de metade precisa de algum tipo de controle ou recurso de acessibilidade para poder jogar.
Uma das nossas metas a médio prazo é termos uma pesquisa mais direcionada, para termos ainda mais informações e mais precisas sobre o público de pessoas com deficiência no Brasil.
Neste contexto, como você particularmente avalia hoje o olhar da indústria de jogos para as pessoas com deficiência? E aqui digo não apenas o olhar social, mas também como um mercado importante. Podemos dizer que é um trabalho que fica em segundo plano para as grandes marcas de hardware e estúdios ou isso tem mudado?
Christian – Como você pode ver, o mercado claramente existe e é grande. Há 10 anos, praticamente ninguém falava sobre acessibilidade em videogames. Hoje, já temos controles adaptados feitos pela própria Sony e Microsoft para seus consoles, vemos cada vez mais jogos com recursos de acessibilidade e este número só tende a crescer.
As empresas estão dando cada vez mais ênfase e a cada ano, vemos soluções mais criativas e interessantes para a inclusão de pessoas com deficiência em games. Muito ainda precisa ser feito, mas vejo o futuro como promissor.
Na sua concepção, como a indústria de fato precisa trabalhar para atingir as pessoas com deficiência de forma eficiente e que gere impacto na vida delas?
Christian – O primeiro ponto é incluir pessoas com deficiência no seu processo de desenvolvimento. Nenhuma solução de acessibilidade será eficiente se for desenvolvida por pessoas sem aquela deficiência. Daí a importância de contratar pessoas com deficiência em todas as etapas do desenvolvimento, seja de jogos ou de hardware, para que o produto final seja realmente inclusivo.
Além disso, é importante que as empresas se informem sobre o assunto, aprendam como fazer jogos mais acessíveis. Neste sentido, a AbleGamers criou a Accessible Player Experience (Experiencia Acessível do Jogador), ou APX. São padrões de design que criam um vocabulário comum de acessibilidade para a indústria de games, além de trazer diversas soluções para questões enfrentadas por jogadores com deficiência. Este material está disponível gratuitamente no site da AbleGamers.
Quem quiser se aprofundar ainda mais no assunto e se certificar como um desenvolvedor de jogos acessíveis, a AbleGamers também ministra um curso sobre o assunto, inclusive no Brasil.
Como a AbleGamers tem dialogado com essa indústria e qual tem sido as maiores conquistas e maiores desafios desse diálogo com um mercado tão poderoso?
Christian – A receptividade da indústria é muito boa. A AbleGamers participou dos processos de criação do Controle Acessível de Xbox e do Controle Access de PlayStation, inclusive no lançamento destes produtos no Brasil. Diversos estúdios, desde grandes até estúdios independentes, vem certificando seus profissionais em APX para que jogos cada vez mais acessíveis sejam criados.
Há alguns anos já existe a categoria “Inovação em Acessbilidade” no The Game Awards, a maior premiação de videogames do mundo, dando visibilidade para o tema.
Aqui no Brasil, participamos da elaboração do projeto de lei 2299/2023 proposto pelo Deputado Federal Vinicius Carvalho (REPUBLICANOS-SP) que visa a redução ou isenção de tributos federais para jogos e controles adaptados, facilitando o acesso a quem precisa destes recursos.
Um dos nossos grandes desafios é a conscientização sobre o tema. Muitos desconhecem que existem soluções de acessibilidade. Encontramos muitas pessoas com deficiência que deixaram de jogar e nunca imaginaram que poderiam voltar a se divertir com videogames por pura falta de conhecimento.
Há também ainda um certo preconceito contra jogos de videogame e tal importância para PcD. É importante destacar que pessoas com deficiência sofrem muito mais de isolamento social. Seja pela falta de acessibilidade de locais, produtos e serviços para atender este público, seja por preconceito ou outros motivos.
O videogame, desde que acessível, se torna uma ferramenta fortíssima que permite incluir essa pessoa na sociedade, permite que ela socialize, jogue, faça amigos, divirta-se, compartilhe experiência e trabalhe.
Na prática, no dia a dia do gamer PcD, quais são os desafios que talvez a indústria esteja ignorando ou precise evoluir da forma mais rápida possível para atender esses jogadores?
Christian – Cada deficiência é única e não existe uma solução universal que atenda todas as pessoas. Nosso trabalho com controles adaptados é todo individualizado, chegando a levar meses até encontramos a solução ideal para uma pessoa. Controles voltados para pessoas com deficiência como o de Xbox e de PlayStation ajudam muito, porque permitem que algumas pessoas encontrem a solução por conta própria.
Os jogos vêm sendo lançados com cada vez mais recursos de acessibilidade, permitindo assim que mais pessoas possam jogar e compartilhar suas experiências. No geral, a indústria veio evoluindo muito nos últimos anos e o que ela precisa fazer é manter este ritmo. Acessibilidade é algo que precisa ser construído aos poucos, evoluindo sempre em cima do que foi feito antes e parte do nosso trabalho da AbleGamers é estar junto com a indústria para que ela se torne cada vez mais acessível.
E com o poder público, como tem sido esse diálogo? Sabemos que o governo brasileiro tem algumas pautas ativas em relação a indústria de games, exportação etc, mas em relação ao trabalho de vocês – há alguma atenção, evolução ou demanda para ser atendida?
Christian – Conforme comentado anteriormente, auxiliamos na elaboração do PL 2299/2023 que visa a redução ou isenção total de tributos federais para controles e jogos adaptados para pessoas com deficiência. Continuamos trabalhando frente à esfera pública para que este projeto se torne lei o mais breve possível.
Temos um bom contato com a Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo e já articulamos com alguns deputados estaduais para que haja incentivos semelhantes da esfera estadual. Isso é muito importante para viabilizar a indústria de controles e acessórios acessíveis no Brasil.
Um Quadstick, por exemplo, controle adaptado para que pessoas tetraplégicas possam jogar, custa US$ 600 nos Estados Unidos, mas chega ao Brasil custando quase R$ 7.000. Um único botão especial para um controle adaptado de Xbox chega a custar R$ 300 e muitas vezes, a pessoa vai precisar de diversos destes botões. Tudo isso dificulta muito nosso trabalho.
Quais as perspectivas de trabalhos da AbleGamers Brasil para 2024 e quais foram as maiores conquistas/ações do ano passado?
Christian – Conseguir a propositura deste projeto de lei foi uma grande vitória do ano passado, mas em 2023 também realizamos nosso 7º evento anual, que visa conscientizar sobre a causa e arrecadar fundos para a continuidade do nosso trabalho. O evento vem ganhando cada vez mais notoriedade, juntando gamers com e sem deficiência para mostrar que é possível que todos joguem juntos.
Em 2023, contamos com a presença de diversos streamers com deficiência com Fabrício SDW, Noobzinho, Mila, Kevin “Cadeira FPS”, Machadinho e Dizeritus, além de streamers famosos como Lucky Salamander, Sidão do Game, Felipe Goldenboy entre outros e a ilustre presença de Marcos da Costa, Secretário da Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo.
Formamos 13 alunos na segunda turma de APX no Brasil, aumentando assim a qualificação profissional do mercado de games nacional. A turma contou com 4 alunos com deficiência. Atendemos 23 pessoas no nosso programa de controles adaptados no Brasil, sendo que 14 controles foram doados e o restante está em fase de desenvolvimento.
Participamos de uma série de eventos e palestras, incluindo umas das mais bem recebidas palestras do BIG Festival 2023 e uma banca de TCC sobre acessibilidade em videogames da Universidade de engenharia Mauá.
Finalizamos o ano participando da CCXP junto com a Microsoft Brasil, onde foram montadas 4 estações acessíveis para o atendimento de pessoas com deficiência e de interessados em acessibilidade. No total, mais de 2 mil pessoas (com e sem deficiência) foram atendidas nos dias da feira.
Para 2024, temos muitas novidades, mas a maioria não pode ser anunciada ainda. O que podemos confirmar é a realização do nosso 8º evento anual no dia 21 de setembro, o dia nacional da luta da pessoa com deficiência. Mas fiquem de olho nas nossas redes que assim que pudermos, anunciaremos grandes novidades ainda para este primeiro semestre.