Jogar videogame pode ser como uma visita ao museu? Ou talvez como apreciar uma paisagem? Ao invés de esmagar botões por dezenas de horas, que tal um gameplay de cinco horas em que a estética e a narrativa são o foco?
Games contemplativos – em que a experiência visual, enredo e arte são a base da criação – se tornaram uma tendência na indústria de games há mais de uma década. Journey, da thatgamecompany, lançado em 2012, talvez seja o maior marco. De lá para cá a indústria, principalmente a de jogos independentes, que necessita criar produtos únicos, surfou essa onda.
Você pode achar que esse tipo de game é nichado e não atrai os jogadores “mais hardcore”, mas para quem cria essas experiências o olhar é o oposto. Roger Mendoza, cofundador do catalão Nomada Studio e desenvolvedor dos aclamados GRIS (2018) e, agora, Neva (2024), ambos publicados pela Devolver Digital, talvez seja um dos que melhor tenha entendido esse mercado.
Em entrevista a minha coluna no The Gaming Era, Mendoza é muito claro sobre os objetivos do estúdio. “À medida que a indústria e o meio amadurecem, os jogadores estão mais abertos a experiências que vão além da ação tradicional e dos jogos competitivos, buscando aqueles que permitem introspecção, exploração e envolvimento emocional”.
Nós jogamos Neva* e se trata de uma experiência visual tão ou mais marcante que GRIS. Um trabalho em que cada tela faz com que o jogador pare, contemple, e volta e meia queira “printar” uma espécie de recordação daquele momento. É como estar em frente a uma tela pintada por um grande artista.
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Nessa nova experiência, a Nomada quis trazer momentos de gameplay mais tradicionais, acrescentando um companion e desafios de puzzles e plataforma mais elaborados que no game anterior. Mas, sem dúvida, o que fica na mente é a capacidade do estúdio de, novamente, fomentar a arte através de um jogo. Uma criação única.
A entrevista com Mendoza oferece insights muito bacanas sobre o mercado de games contemplativos e, claro, sobre Neva. Confira abaixo e compartilhe comigo suas impressões!
Games mais contemplativos, com uma experiência estética, visual e de narrativa, ganharam muito espaço no mercado nos últimos anos. Como vocês avaliam o cenário entre os jogadores para esse estilo de jogo?
Roger Mendoza: Temos a sorte de fazer os jogos que queremos sem precisar avaliar muito o cenário do mercado. É verdade que, ultimamente, temos visto um aumento nesse tipo de jogos.
Isso pode ser devido ao boom dos jogos indies e seu desejo de criar experiências originais e impactantes, ou talvez porque, neste mundo em rápida mudança, com infinitas possibilidades querendo nossa atenção, ansiamos por experiências emocionais mais lentas.
À medida que a indústria e o meio amadurecem, os jogadores estão mais abertos a experiências que vão além da ação tradicional e dos jogos competitivos, buscando aqueles que permitem introspecção, exploração e envolvimento emocional. E, do nosso lado, queremos continuar nessa direção.
Estamos falando em jogos mais curtos em que a experiência emotiva, de contemplação, é priorizada em detrimento de mecânicas de jogo. De forma geral, em um segmento tão concorrido como o de games, já se entende essa proposta?
Mendoza: Às vezes, mas nem sempre. Com GRIS, a principal crítica foi que não havia jogabilidade ou desafio suficiente.
Enquanto alguns jogadores viram isso como uma fraqueza, outros – especialmente pessoas que não são jogadores regulares – apreciaram a acessibilidade do jogo.
Como nosso objetivo é criar jogos carregados de emoção, acreditamos que a acessibilidade é fundamental para que pessoas de todas as origens aproveitem nossas histórias. Desta vez, com Neva, queríamos incorporar uma jogabilidade mais tradicional, como combate e plataformas adicionais, não porque nos sentíamos obrigados, mas porque víamos isso como um desafio criativo que fazia sentido dentro da história.
O que foi mais desafiador em criar o visual de Neva, considerando que a Nomada fez um trabalho extraordinário em GRIS? Como foi criar algo único novamente já com essa bagagem e responsabilidade do jogo anterior?
Mendoza: Nosso objetivo era criar um estilo de arte muito diferente do GRIS e, ao mesmo tempo, estabelecer uma identidade visual que permitisse que as pessoas reconhecessem Neva como sendo dos mesmos desenvolvedores.
Neva é tão distinto: para começar, não tem linhas de borda como GRIS tinha, e não usamos aquarelas. Em vez disso, usamos cores sólidas sem linhas, como borrões. Foi um desafio encontrar esse ponto ideal, mas achamos que o alcançamos – e as pessoas parecem gostar.
O Nomada apostou em criar um gameplay de combate e com companion neste novo game, em alguns momentos desafiador. Qual foi o ponto para essa escolha? E que inspirações em relação a mecânica de outros jogos tiveram?
Mendoza: Desde o início, tínhamos certeza de querer dois personagens para o nosso segundo jogo. Nossa principal inspiração foi ICO (2001) da Team Ico, que também apresenta dois personagens, um menino e uma menina, semelhante ao nosso conceito inicial.
No entanto, quando decidimos fazer de um dos personagens um companheiro lobo, nos inspiramos em The Last Guardian (2016), principalmente em como o relacionamento do protagonista com Trico parece orgânico. Nosso objetivo era criar o mesmo tipo de vínculo natural entre Alba e Neva.
Tecnicamente, ter dois personagens na tela – especialmente com um com IA que parece realista, se move ao redor do jogador, tem sua própria personalidade e caminho, mas ainda guia o jogador – foi um grande desafio.
O combate também era novo para nós, já que GRIS não o incluía, e tínhamos poucas referências de outros jogos com um companheiro de quatro patas na batalha, o que dificultava o design dessa mecânica. No final, porém, encontramos uma maneira de fazê-lo funcionar e estamos muito felizes com o resultado.
Aliás, o que foi mais difícil neste balanceamento entre combate, puzzles e contemplação?
Mendoza: Acho que o mais difícil foi não ter muito ou pouco de nada. Especialmente no início, como o combate era a novidade que estávamos introduzindo, estávamos confiando demais nele.
E sabíamos que também queríamos continuar tendo quebra-cabeças, mas eles geralmente são a coisa mais difícil de projetar, já que precisam fazer sentido dentro do mundo, mas ainda garantir que sejam divertidos e envolventes.
Levamos um pouco de tempo e muitos testes para ter o ritmo certo e garantir que o combate, os quebra-cabeças e a narrativa se entrelaçassem corretamente, mas foi um elemento-chave para garantir que o jogo parecesse certo.
Após um lançamento como Neva, com uma recepção tão incrível, quanto tempo um estúdio como Nomada pode ficar tranquilo e “curtir o momento” até começar a pensar um novo projeto? Pode nos contar um pouco dessa dinâmica?
Mendoza: Nós tentamos! Mas é sempre desafiador – sempre há ideias flutuando. Depois de terminar GRIS, as coisas eram diferentes, pois não sabíamos se poderíamos continuar fazendo jogos. GRIS foi concebido como um projeto independente.
No entanto, após a incrível recepção, pudemos continuar com o estúdio e enfrentar um novo projeto. É por isso que Neva demorou seis anos para chegar; não foi planejado inicialmente. Agora, as coisas mudaram.
Temos algumas ideias para novos projetos, e Conrad (Conrad Roset, artista e cofundador do Nomada) já está trabalhando em esboços, que na verdade é a primeira etapa do nosso processo. Mas ainda não podemos compartilhar mais detalhes!
* A Devolver Digital gentilmente cedeu uma chave de Neva ao The Gaming Era