Pedro Santoro Zambon tem uma história de relacionamento com os jogos eletrônicos mais ou menos comum entre brasileiros de classe média com mais de 30 anos. Começou jogando na infância, embora “nem sempre tivesse o videogame do ano”, e criou ao longo do tempo uma paixão que, sonhava, levaria para a vida adulta como um trabalho.
“Meu pai é uma pessoa que me permitiu desde cedo ter contato com o computador, ele jogava no MSX [tipo de microcomputador desenvolvido pela Microsoft e pela ASCII nos anos 80]. Por isso nos anos 1990 eu tinha computador em casa”, lembra ele ao The Gaming Era.
Escolheu cursar jornalismo, graduação que concluiu na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru, interior de São Paulo. E é aqui que o caminho dele começa a ficar um pouco diferente.
“Durante a graduação o bichinho da pesquisa me mordeu, fui fazer iniciação cientifica”, lembra. “Mas paralelamente eu também queria viver na graduação a experiência de trabalhar com games de alguma forma. E não havia projetos na universidade que fossem ligados aos games.”
Enquanto pesquisava o tema, ajudou a fundar um canal de notícias sobre jogos eletrônicos, o Comando Login, o que o levou a ter contato com desenvolvedores de jogos brasileiros. Se apaixonou ainda mais pelo tema, que passou a pesquisar dentro da academia, unindo games e políticas culturais.
“Isso deu origem ao meu mestrado, que foi sobre políticas públicas para games no Brasil na Unesp de Bauru. Fiz uma genealogia desse processo [de evolução do setor] entre 2004 e 2014. Começa com a fundação da Abragames e o lançamento da primeira política de fomento, a Jogos BR, do Ministério da Cultura da era [Gilberto] Gil”, recorda.
Nos anos que se seguiram, Zambon concluiu um doutorado e deu aulas sobre o tema em diversas instituições. Se envolveu em pesquisas e estudos para a formulação de políticas públicas para o setor de games, e colaborou com a Homo Ludens, a Spcine e a própria Abragames, além de consultorias diversas, inclusive internacionais.
Até que fundou a sua própria empresa, a Savegame, que atua no “desenvolvimento da indústria de games por meio de consultoria especializada, programas de treinamento e capacitação, pesquisas setoriais e ciência para formulação de políticas públicas”. Também é vice-presidente da unidade de incubação da IGDA (International Game Developers Association) e pesquisador da universidade de Utrecht, na Holanda, onde mora atualmente.
O mote da conversa do pesquisador com o TGE foi, claro, a aprovação do Marco Legal dos Games, que agora é lei. Ele está otimista com os caminhos que se abrem para a indústria brasileira de games após a aprovação. Muito embora, ressalta ele, a sanção da lei seja apenas uma parte do ambiente positivo que se forma.
“No Brasil é isso: as estrelas se alinhando. Não sei se vai rolar, mas tem coisas acontecendo que nos posicionam muito bem”, diz.
Confira a seguir os melhores momentos da conversa que tive com Zambon.
TGE: Ao que você está se dedicando nesse momento? Com você na Holanda, a Savegame continua atuante no Brasil?
Pedro Zambon: Minha pesquisa de doutorado gerou uma série de dados sobre o que fazer para desenvolver um ecossistema [de empresas de games]. E agora eu preciso viver o que pesquisei. Eu queria implementar algumas dessas ações.
Eu criei a Savegame para orbitar projetos e poder chamar outras pessoas para executar. Mas eu sempre senti um ímpeto de voltar para a academia, porque eu sentia falta de alguém estudando games enquanto indústria.
Eu já tinha identificado que muitas vezes os estúdios indies estão bloqueados pela falta de alguma competência em alguma coisa, ou ninguém quer lidar com a parte de business. E eu senti essa necessidade de dar um passo atrás para aprimorar a formação dos estúdios.
E eu lembrei de um contato de um grupo de trabalha do departamento de informática daqui [da Utrecht University], chamado Software Technology for Learning and Teaching, e faz alguns anos que eles vêm pesquisando tecnologias algorítmicas de matchmaking [encontro com fins de trabalho] de profissionais.
Eles começaram a desenvolver métodos que são mais eficientes para profissionais criativos, porque respeitam a vontade de cada profissional. E eu vim para cá trazendo minha experiência sobre como lidar com estúdios de jogos para adaptar essa metodologia e encontrar potenciais sócios de estúdios de games. E depois implementar isso em game jams.
A SaveGame continua no Brasil. Eu fui treinando minha equipe. Eles vão continuar atuando, eu fico como consultor estratégico. É uma equipe fixa com três pessoas, mas a cada projeto eu tenho uma rede que vou agregando [mais pessoas].
TGE: De modo geral existe essa percepção de que falta profissionalização dos estúdios de games brasileiros, que geralmente nascem daquela ideia de alguns amigos que se juntam depois de dizer “vamos fazer um game?”. É disso que você está falando?
Pedro Zambon: Eu não acho que isso seja uma questão particular do Brasil. É uma característica intrínseca da produção cultural independente, não só em games. Coletivos de produção de conteúdo informais que, à medida que precisam ganhar dinheiro, precisam se formalizar.
A questão é que em games existe uma característica particular: os caminhos de distribuição são as mesmas avenidas em que a produção mainstream circula. A forma de ganhar dinheiro vendendo um game indie é a mesma do jogo triplo A, o que exige uma certa formalidade para ao menos acessar essas plataformas.
E obviamente quanto mais formalizado o estúdio, mais preparado para fazer acontecer. E a gente precisa encontrar um meio termo ideal entre o dinheiro e a motivação criativa. Se fosse só sobre ganhar dinheiro ninguém estaria nessa indústria. É preciso buscar forma de tornar o sonho em algo viável.
Existem formas de planejar os lançamentos para não depender da sorte. Esperança não é modelo de negócios.
E aí entra o Sebrae como uma das instituições que tem entendido isso. Claro, é uma das propostas do Sebrae como missão. Só que a questão dos games no Sebrae era meio complicada porque os games são o “patinho feio” da cultura: tecnologia demais para serem cultura e cultura demais para serem startups.
Mas os Sebraes estão entendendo isso aos poucos e foram se coordenando com o Sebrae Nacional para criar programas específicos para a área de games, com suas complexidades inerentes.
TGE: Agora falando do Marco Legal dos Games. Sinto que um dos grandes méritos do processo de aprovação da lei foi gerar uma união entre o setor. Você concorda?
Zambon: Eu acho que o movimento do Marco Legal foi histórico para o setor. Inclusive como diagnóstico de união. Existiu um movimento importante de deixar as diferenças de lado para um bem comum que outros setores tem mais dificuldade para fazer. Em especial setores culturais.
Isso culminou de um processo que já estava acontecendo dois anos atrás, desde 2021, 2022. As associações regionais começaram a estar mais em contato, muito capitaneadas pelo Ivan [Sendin] da ADJogosRS. Começamos a fazer mensalmente encontros entre as associações regionais para trocar figurinhas e gerenciar a relação com a Abragames.
O Marco Legal também trouxe um processo de amadurecimento muito grande, quando percebemos que existem duas esferas de articulação política: a técnica, com boas experiências e o em que o setor já articulava bem, ajudando ministérios, secretarias etc; e a esfera da articulação política, que é o corpo a corpo com o Legislativo e que havia sido deixada meio de lado.
E isso no meio de um processo de pandemia em que a prioridade dos empresários estava em outro lugar. Vou destacar muito o papel do Márcio [Filho, da RING], pelo engajamento e experiência dele. Ele tem uma vivência de militância que foi fundamental para despertar e amadurecer os pares institucionais. Ele assumiu inevitavelmente uma liderança.
E no meio de tudo isso o que acabou acontecendo é que do limão se fez uma limonada inacreditável.
De um cenário que não cheirava nem fedia [o projeto original de autoria do deputado Kim Kataguiri], surgiu um projeto péssimo. A aproximação com os fantasy games ia gerar desdobramentos bem complicados, que iam inclusive atrapalhar um histórico de 20 anos de políticas culturais. E aí juntou todo mundo e debatemos a indústria de games.
O Marco Legal inaugura uma política de Estado para games, que sobrevive a transições de gestão. Fez o MBL e o PT comemorarem a aprovação de um mesmo projeto de lei. Consegue fazer setores de política à esquerda e à direita verem o impacto da regulamentação.
O game é a mídia do século XXI. De manifestação de consumo simbólico desse milênio.
O Brasil passa a não ser não só um grande consumidor, mas ganha a oportunidade de criar seus jogos, algo que traz grande impacto potencial econômico e de soft power para o Brasil no futuro. O país excluído desse sistema não vai ser capaz de enfrentar os desafios que vamos ter nesse próximo século.
TGE: Posto isso, você acha que a aprovação de uma lei como o Marco Legal dos Games demorou demais para o Brasil? Estamos atrasados?
Zambon: Eu venho de uma perspectiva evolucionária. A gente não analisa a evolução de uma indústria, um setor produtivo, como uma fotografia, mas sim como um filme em movimento. Enquanto fotografia o setor de games tem muitas deficiências, que continuará tendo até como reflexo da forma como a indústria se organiza globalmente.
Mas de uns tempos para cá, temos visto empresas brasileiras de games conseguindo se consolidar como sustentáveis. Não estou dizendo que a indústria é sustentável, principalmente porque a cadeia produtiva é dependente de capital estrangeiro e publicação em plataformas internacionais.
Ela carece de sustentabilidade por co-dependência dos movimentos globais de investimento e interesses de empresas que não estão no Brasil. Isso não é só uma questão do setor de games, mas de mídia como um todo.
Estamos atrasados? Sim e não. Perdemos obviamente várias ondas. A primeira indie dos anos 2010, a primeira de jogos de smartphones. Teve uma Wildlife surgindo, claro, pelo menos uma empresa que surfou na onda dos free-to-play. Mas a gente não absorveu a fronteira de vários dos ciclos de reorganização do setor.
Agora temos uma crise na indústria. O setor de games triplicou de tamanho em menos de 10 anos. Cresceu mais de 10% ao ano. Na pandemia explodiu mais ainda, as pessoas ficaram em casa, e esse movimento fez com que muita gente investisse dinheiro projetando um crescimento que era evidente que não se sustentaria.
Não dá para dobrar um setor a cada 10 anos. Tem um teto.
É natural a desaceleração, mas a quantidade de gente atuando no setor não. A minha visão, enquanto quem estuda o movimento da indústria de games, é que as forças produtivas estão se reorganizando, os modelos de negócio também.
Não é verdade que não tem para onde crescer. A questão é que os grandes players globais, como em qualquer mercado, só expandem para o Sul Global quando não conseguem mais crescer no norte. América Latina, Sul da Ásia, África, Oriente Médio, que tem muita população, mas não o padrão de consumo do norte.
A gente gasta 10% do que o americano gasta em games por ano. Como não tem para onde crescer?
TGE: Isso quer dizer que nós somos a próxima fronteira para a indústria global de games?
Zambon: As empresas não querem ter que crescer em países pobres porque são caros, elas precisam investir. Além disso temos esse cenário em que a sustentabilidade das grandes produções triplo A, tal qual os filmes hollywoodianos de orçamentos pornográficos, se tornam insustentáveis.
É uma curva de tendência que vista como inevitável por quem estuda a produção audiovisual. O GTA VI não tem como fazer o mesmo salto [do GTA V]. Vai chegar um limite em que ninguém aguenta jogar um game de 500 horas de conteúdo.
Mas os últimos grandes hits, como Vampire Survive, Palworld e Among Us, por exemplo, esse movimento mostra que ainda que o dinheiro do setor não cresça a uma taxa de 10% ao ano, a tendencia é que ele se redistribua para mais agentes com produções médias. Claro, metade do faturamento do setor vai continuar em Fortnites e Clashs of Clans.
E aí respondendo sua primeira pergunta: estamos chegando tarde demais? Nas ondas passadas com certeza. Mas é característico da indústria ter reorganizações do setor produtivo.
Na minha visão otimista estamos no meio de uma transformação produtiva que dará oportunidade para o Brasil se posicionar de forma muito relevante na produção global.
Mas precisamos fundamentalmente escapar da armadilha de ganhar dinheiro fácil com outsourcing [terceirização] por conta da relação barata entre dólar e real. Vai existir uma sedução muito grande de ocupar nossa capacidade produtiva na produção intelectual gringa.
Mas a forma como o Marco Legal está construído, cria-se instrumentos para isso não acontecer.
TGE: Voltamos para o Marco Legal dos Games. Você está esperançoso quanto ao futuro da indústria brasileira de jogos eletrônicos?
Zambon: Ele [a Marco] me traz inevitavelmente uma grande esperança. Porque acho que a gente está construindo as condições necessárias para esse salto acontecer. Usando a expressão clássica, agora falta combinar com os russos.
A gente não controla o que acontece na indústria. Obviamente não conseguimos controlar todas as variáveis, mas aquelas que nos competem enquanto nação estamos construindo. Um framework legal que estabelece parâmetros bem maduros sobre o que é o setor de games e como se organiza.
Assumindo essa ambivalência entre a tecnologia e o audiovisual e a construção simbólica. Incluindo dispositivos que já existem, mas não estavam organizados, para o setor de games.
Nos próximos 12 meses vamos ter uma transferência de R$ 30 milhões em recursos da Lei Paulo Gustavo para produção de jogos. Uma grana indo para estúdios pequenos e médios fazerem coisas que nunca tiveram capacidade de produzir.
É o pilar virtuoso de uma política sustentável: fomento, conhecimento e networking. Essas políticas estão sendo implementadas, as instituições estão entrando no jogo, o governo federal voltou a existir, porque tivemos quatro anos de apagão em políticas públicas federais.
Muitas instituições estão se articulando e querendo lançar coisas para games. E o Marco Legal pode trazer marcos municipais e estaduais nos próximos anos, porque existem instrumentos nos municípios e Estados que ainda não vão para games. Por exemplo nas agências de fomento estaduais.
Essa oportunidade coincide com um momento geopolítico muito complicado para o mundo, em que duas das principais fronteiras produtivas estão em crise. A Ucrânia era um deles, a fronteira do leste europeu e os países nórdicos enfrentando questões de segurança. A Arábia Saudita que investia bilhões está tendo que segurar o freio por causa da instabilidade na região.
Essas duas regiões que competiam com a América Latina estão em crise, então quem queria botar dinheiro lá está olhando para outros lugares.
Para o Brasil é isso: as estrelas estão se alinhando. Não sei se vai rolar, mas têm coisas acontecendo que nos posicionam muito bem.