Se o mercado nacional (e global) de games passa por uma crise severa, que afeta profissionais e leva estúdios ao fechamento, um dos grandes desafios do momento é impedir um êxodo de talentos nacionais para empresas estrangeiras. Para Rodrigo Terra, presidente da Associação Brasileira das Empresas Desenvolvedoras de Jogos Digitais, evitar esse problema passa não só por estimular a organização de novos estúdios nacionais, mas estruturar os médios e grandes estúdios desenvolvedores que aqui atuam para reter esses talentos.
É a segunda gestão de Terra à frente da Abragames. Ele lidera a chapa eleita para o período entre 2024 e 26 e, em conversa com Marcelo Vieira, editor do The Gaming Era, falou sobre o trabalho da Associação e as perspectivas para o mercado nacional ao longo desse ano. Ao reconhecer o tamanho da crise e seus desafios, também acha que as empresas brasileiras precisam diversificar suas atividades para aproveitar oportunidades de negócio emergentes.
“Eu acho que existe oportunidade no mercado nacional. O próprio estúdio de games vai ter que se reinventar, e isso traz perspectivas”, disse.
Rodrigo Terra é co-fundador e chefe evangelista da ARVORE Immersive Experiences, além de professor de pós-graduação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Ele acredita que preparar os estúdios brasileiros para o mau momento passa por profissionalizar a gestão.
“Não é só olhar para projetos e fomentar jogos: é como virar uma empresa! E aí parte das nossas iniciativas é de capacitar os empresários da indústria para poderem atuar de forma melhor e estarem preparados nos momentos de crise, como agora, por exemplo”, salienta.
Confira abaixo os melhores momentos da entrevista.
The Gaming Era: Rodrigo, você acabou de ser eleito para a segunda gestão à frente da Abragames. Quais os objetivos estratégicos para o novo período?
Rodrigo Terra: Muito da primeira gestão aconteceu no meio da pandemia, então houve uma questão de segurar as pontas da própria estrutura da associação. E conseguir uma ponte com os estúdios, de forma a apoiá-los e aumentar as atividades de forma remota. Fazer um trabalho meio às pressas até um pouco na contramão do que a gente queria.
A gente teve que focar muito mais no processo de comunicação, interlocução com outras entidades e o mercado. E a fazer um trabalho mais dentro de casa, de parcerias institucionais.
No último ano da gestão [passada] já dava para sair de casa, com o fim da pandemia. E conseguimos estabelecer alguns parâmetros novos de crescimento. A associação precisa crescer porque o mercado desenvolvedor está crescendo, e nós representamos boa parte dos estúdios.
Os objetivos que traçamos para o esse segundo termo são de foco no crescimento das ações estruturantes para suportar esse momento de indústria. Vamos vir com novos programas que vão envolver capacitação. E a área de investimento e qualificação das empresas.
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TGE: Pode detalhar um pouco melhor?
Terra: São dois grandes focos os próximos dois anos, que a gente espera que sejam perenes na própria Abragames. O primeiro é converter o interesse nacional e internacional no mercado de games e desenvolvedores, e também do mercado consumidor, em presença. Estaremos presentes. E converter esse interesse do player nacional e multinacional que queira entrar no mercado de jogos de alguma forma.
No desenvolvimento de estúdios locais. Em infraestrutura aqui. Para que os estúdios possam ter um melhor ecossistema. Comprando produtos e serviços dos estúdios e deixando valor aqui dentro do território. Não é mais ficar só de longe, É estar aqui operando.
E o segundo ponto é transformar a nossa base. Temos visto um crescimento maior das empresas iniciantes.
Temos uma base grande de micro e pequenos estúdios no País. Como a gente consegue transformar essa base? Dar mobilidade em termos empresariais? Ajudar esses estúdios a crescerem não só com faturamento, mas como empresas?
Não é só olhar para projetos e fomentar jogos: é como virar uma empresa! E aí parte das iniciativas nossas é capacitar os empresários da indústria a poderem atuar de forma melhor e estarem preparados nos momentos de crise, como agora, por exemplo. Que tem essa montanha russa, o inverno dos games.
A gente fala de crescimento, mas também de recuperação das perdas. Como a gente prepara o empresário para esse cenário?
TGE: O que você quer dizer é que falta profissionalização para os estúdios brasileiros, já que a maior parte é uma microempresa, certo?
Terra: Muitas vezes o estúdio nasce da paixão. Você termina uma formação ali, qualquer que seja, técnica ou universitária, curso livre etc.
Geralmente as empresas nascem da paixão de se fazer videogame. O brasileiro acaba tendo um perfil muito empreendedor. Às vezes até por conta da falta de oportunidade, ele acaba empreendendo por necessidade, não vontade. Não é diferente no mercado de games.
Levando em consideração que é preciso aumentar as empresas médias e grandes para ter mais vagas, para elas absorverem talentos em escala, a gente também acaba vendo um movimento natural de empreender. A barreira de entrada de desenvolvimento de jogo é muito baixa. Então qualquer pessoa consegue publicar um jogo na Steam. E tem um detalhe que outros [mercados] não tem: a gente nasce internacionalizado. A partir do momento que publico um jogo na Steam, eu vendo no mundo todo. É um mercado global até para uma MEI.
Isso traz outro tipo de desafio para o mercado. Como eu tiro sustento da paixão? Sem essa base de negócio você vai conduzir a empresa tocando projetos e não olhando para o projeto empresa, está olhando para o projeto jogo.
E aí a gente vê que muita da mortalidade dos estúdios é por conta da falta de conhecimento em gestão. Às vezes você é um incrível game designer, e talvez te falte alguém que ame fazer administração para que o estúdio possa florescer.
TGE: Qual o tamanho da mortalidade dos estúdios brasileiros? E como a Abragames busca qualificar esses estúdios? Por meio de parcerias?
Terra: A gente já fez parcerias com o Sebrae no passado e temos feito incursões com entidades. Continuamos temos o grande interesse de capacitar o pequeno negócio. Tivemos várias iniciativas no passado.
E a gente deve fazer alguns anúncios nos próximos meses em ações formativas. Vamos sim novidades em relação a tanto capacitação como outras oportunidades para os estúdios pequenos.
Para fazer isso a gente desde o começo tem tentado fazer interlocução tanto com entidades privadas quanto com players privados mesmo, além do próprio governo. A gente acredita muito nessa dobradinha. Só iniciativa privada acaba não resolvendo.
Temos interlocução com o Ministério da Cultura; da Ciência e Tecnologia; e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. São os três que tem grande interesse [no setor]. Temos diálogos com o Sebrae Nacional, e claro a Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos]. Através desses players a gente vai oferecer caminhos para o micro, pequeno ou médio [estúdio].
TGE: E a mortalidade das empresas?
Terra: A gente não mede formalmente. Temos essa dificuldade, que estamos trabalhando para mudar, por conta do mapeamento de CNPJ. Temos 11 CNAEs diferentes [no setor de games, por conta da falta de um CNAE específico]. Então medir a mortalidade é muito difícil. Temos feito estatística de crescimento de estúdios. Mas para analisar a mortalidade teria que ter um radar para 11 modalidades econômicas.
Por observação e parâmetro, o mercado de games segue o mesmo fluxo de mortalidade natural das pequenas e médias empresas (PMEs) do Brasil.
TGE: As missões internacionais tem sido parte importante da atuação da Abragames. Além delas, que outras iniciativas você destacaria?
Terra: O calendário de missões é bem importante. Nós fazemos para os principais eventos do mundo. Queremos ampliar a presença nos eventos nacionais. Fizemos um investimento na Gamescom, através do programa de exportação. E vamos apoiar o evento [na América Latina] desde a primeira edição.
Isso não significa que não apoiamos outros eventos, levando estúdios para participarem. Tentamos sensibilizar os entes públicos da importância de levar os empresários para eventos.
Ano passado fomos para a Finlândia para reconhecimento do ecossistema. E foi bem horizontal. As missões vão aumentar. Não serão só as que estão no programa. Estamos olhando para outros mercados. Ano que vem queremos fazer Japão, aproveitando a Expo Mundial em Osaka. WebSummit, EWI, que é exclusivo para realidade estendida.
Além disso temos feito um trabalho com o Ministério da Cultura, entendendo iniciativas de capacitação. Temos feito um trabalho de começar a oferecer mais suporte para os associados em relação aos editais. Tentamos fazer isso em colaboração com as entidades regionais de games que temos no País e fazem parte de um grupo de aconselhamento da Abragames com todas as regionais. São uma parte importante do ecossistema.
Os editais de fomento são muito importantes para fazer esse fomento de base. Os pequenos estúdios nascendo com talentos. E quanto mais editais houver, mais empresas se inscrevem e podem despontar.
TGE: 2023 foi um ano difícil para estúdios e trabalhadores da indústria de games. Tivemos uma série de lay-offs, por exemplo. E 2024 não parece que vai ser muito melhor. Qual a projeção da Abragames para o mercado de trabalho?
Terra: Olhamos como um ano de recuperação e reorganização. As demissões em massa atingiram diversos estúdios, e ainda estão atingindo. A projeção internacional é de demissões e fechamentos. Isso é muito ruim. Não estamos alienados.
A questão é o que fazer com isso. Como a gente consegue induzir o setor a passar por esse momento.
Estamos venda a reabsorção de profissionais de empresas que fecharam. Mas temos pressa. O talento brasileiro é muito valorizado por empresas internacionais, então temos medo de um êxodo. A gente só consegue melhorar isso se fortalecermos as empresas que estão conseguindo sobreviver.
Claro, o trabalho de base não é só de recuperação e fazer um estúdio sobreviver por aparelhos. Mas se tiver que fechar as portas, que o profissional continue na indústria aqui.
Para isso não tem outro caminho: temos que continuar desenvolvendo as empresas e trabalhando em cima daquelas que estão sobrevivendo. Para que elas tenham capacidade para absorver mão de obra. E é difícil mesmo, porque a empresa média também está demitindo, os projetos estão estancando.
E aí temos um momento de mercado do “play safe” [jogar seguro, em inglês]. Buscar IPs que tem retorno mais garantido. Isso é um problema para os nossos estúdios, já que os pequenos não conseguem trabalhar com grandes propriedades intelectuais.
TGE: Mesmo diante desse cenário adverso, as perspectivas para o mercado nacional em 2024 são positivas? É possível ter crescimento?
Terra: Eu acho que existe oportunidade no mercado nacional. O próprio estúdio de games vai ter que se reinventar. E isso traz perspectivas. Ele precisa de novas fontes de receita. Ou fecha as portas, ou busca outras formas de trabalho.
O mercado corporativo absorve jogos nos processos corporativos, seja de gameficação ou uso em processos. Tem também o mercado de simulação, e de audiovisual, como potencial cliente. A gente vê o uso crescente em produções virtuais. Já temos isso no Brasil. Poucos estúdios usam, mas quem tem o conhecimento para fazer parte desse processo é o estúdio de games. Profissionais que tem conhecimento de engines, programação.
Eu acho que é um momento de diversificação. De olhar a diversificação de receita como parte do aprendizado. Quem só tem um produto, talvez tenha que diversificar para sobreviver. Eu vejo que o mercado nacional pode ter boas oportunidades nesse momento de crise.
É nos momentos de crise que o mercado de tecnologia criou soluções que usamos hoje no nosso dia a dia. Estamos nesse momento no mercado de games.